sexta-feira, setembro 22, 2006

Os Obreiros Da Ruína

Para um socialista nenhuma dívida, por mais alta que seja, é trágica. Porque na sua cabeça as dívidas pagam-nas os outros. Nunca eles. Sobretudo, como se costuma dizer no autárquiquês (uma espécie de eduquês dos autarcas), se essa dívida foi contraída para deixar “obra”. Isto significa, em português comum, caseiro e familiar, que o autarca viveu acima das possibilidades e gastou o que não tinha e não devia.

A “obra” justifica tudo. Justifica que uma autarquia não pague a quem devia quando devia, coisa vedada a qualquer cidadão desgraçado que se lembre de não pagar qualquer coisa à autarquia a tempo e horas. Justifica que a autarquia peça emprestado para financiar a “obra”. Justifica que a autarquia venda à banca o dinheiro que há-de receber um dia, antecipando aquilo que não tem ainda. O autarca pensa sempre que se encher o olho ao eleitorado com “obra”, o resto é secundário e a reeleição está assegurada. Daí a insensibilidade ao desvario do gasto. A bem da “obra”, isto é, da reeleição.
Pois é. O problema é que nem sempre funciona este círculo infernal. Aveiro é um exemplo. Ainda esta semana, aos microfones da Aveiro FM, o socialista Raul Martins lá recordou, que a dívida da autarquia foi contraída para possibilitar um «salto qualitativo» no concelho. Só a construção do novo estádio custou 55 milhões de euros, lembrando a unanimidade com que toda a gente abrilhantou esta parcela da dívida. Raul Martins, apesar de continuar a justificar a dívida municipal com a “obra”, sabe bem que nem sempre a “obra” é tudo. O PS deixou “obra”, mas foi derrotado nas urnas pelo eleitor ingrato e aparentemente ceguinho (não viu a “obra”). O problema é que este raciocínio contaminou todos os partidos que obtiveram alvará nos idos de 1975 junto do MFA. No fundo, todos têm Ibsen à cabeceira.

Há uma peça fundamental de Henrik Ibsen, chamada «O Inimigo do Povo». É a história de um homem que diz a verdade. Só a verdade. Uma verdade que contrariava interesses instalados e ideias feitas. Por dizer a verdade caluniaram-no de O Inimigo do Povo. Foi quase exterminado fisicamente. Um dia a população em peso, com a irracionalidade própria das multidões, correu a apedrejar a sua casa.

Se o mote de Ibsen fosse tomado a contrario, os autarcas obreiros seriam «os amigos do povo». Mas não. As multidões são tramadas; não se satisfazem com nada nem com ninguém. O homem de Ibsen foi maltratado por dizer a verdade. O teatro percebe bem de política. E há quem esteja disposto a levar esse teatro ao limite do absurdo.

No mesmo programa de rádio, Gilberto Ferreira, militante do PSD e administrador da empresa municipal Parque Desportivo de Aveiro, defendeu a realização de auditorias às contas da Câmara «de quatro em quatro anos». «Sempre que houver eleições, seja qual for o executivo». Como se as contas públicas fossem sistematicamente de desconfiar, como se os eleitos fossem por princípio e fatalidade democrática, gente sem escrúpulo nem confiança financeira. Para este gestor municipal até o actual Executivo municipal se inclui no grupo, já que defende uma auditoria no final do actual mandato (às vezes o teatro revela-se preverso…).

Por estes dias, na longínqua Hungria, ocorre uma revolta popular contra o Primeiro-Ministro que ganhou as eleições com certas promessas e governa a fazer o contrário. Olha se o exemplo pega! Imaginem só se o inimigo do povo de Ibsen vira, afinal, o mentiroso. As bolhas são assim, vão crescendo sem ninguém se dar conta e um dia rebentam e aí é tarde para concertações e torna-se necessária a ruptura.

Em Aveiro a festa foi bonita, pá, pois foi, pá, mas a factura está aí e a penúria também. Da dívida, já se suspeitava. O que não se imaginava era tanta inépcia para a estancar e para a diminuir.

(publicado na edição de hoje do Diário de Aveiro)

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