Há combates de civilização que não se medem nem vêem no imediato. Podem demorar e durar anos de vida. Muitos dos seus soldados podem até morrer em combate sem verem o fruto da sua vida. São esses os combates que valem mais a pena, mas são também os mais ingratos para quem os trava.
Ontem, soube-se que o Estado foi condenado a pagar um total de dois milhões de euros de indemnizações relativas a 46 processos de abuso sexual de crianças e jovens da Casa Pia, por decisão de um Tribunal Arbitral criado pelos Ministérios da Segurança Social, Justiça e Finanças.Este tribunal concluiu que os jovens em causa foram mesmo abusados e que muitos desses abusos aconteceram na sequência de negligência por parte de responsáveis da Casa Pia. Alguém tenciona pedir-lhes responsabilidades? Assim, trinta e nove vítimas vão receber a indemnização máxima de 50 mil euros, uma vez que foram abusados enquanto estavam à guarda da instituição, ao passo que outros cinco vão receber 25 mil euros.Com a atribuição destas indemnizações, os jovens ficam agora impedidos de interpor mais acções indemnizatórias contra o Estado, apesar de esta decisão do Tribunal Arbitral ser independente dos processos crime que estão em julgamento em investigação, bem como de recorrer desta decisão.Este facto foi confirmado pela advogada da maior parte destas vítimas, que esclareceu que o recurso a este tribunal arbitral implica a «recusa da ida a uma outra instância».
Após esta decisão ser conhecida ouviu-se um coro geral de contentamento e de louvor à Justiça. Afinal de contas, o Estado, esse malandro distante e impessoal, será crucificado no défice com uma indemnização às vítimas. Ninguém de bom senso deixará de reconhecer o direito à indemnização daqueles jovens que silenciosamente suportaram durante anos a fio, silenciosa e amedrontadamente, a tara de uns quantos.
Mas isto não chega. Justamente porque hoje existe a consciência de que o Estado, essa almofada conveniente para as más consciências lavarem a incúria que as tinge, somos nós. Sim, somos nós que vamos pagar aquela indemnização. Nós todos.
E o que vai acontecer aos responsáveis que durante anos desfilaram complacentes, insensíveis ou negligentes pela instituição e pelos Governos que tinham o dever de tutela sobre aquela instituição? E a clientela patológica que se satisfez na brutalidade e na violência?
Mais: o Estado acaba de reconhecer que afinal, pasme-se, houve vítimas. Se houve vítimas é porque houve crime. E se houve crime existiram autores desse crime. Seguramente intocáveis, e acima de qualquer suspeita, como ainda há dias uma testemunha relatava em audiência.