A Justiça portuguesa anda pela ruas da amargura. Vamos por partes. Nas vésperas das eleições presidenciais, o Presidente da República interrompeu o jantar dos cidadãos em directo nos telejornais, para comunicar um facto inédito e gravíssimo: que tinha exigido ao Procurador-Geral da República, cuja substituição nunca aceitou, um inquérito com resultados a curtíssimo prazo, para saber o que tinha acontecido com o envelope 9 do processo da Casa Pia.
Desde já me permito proceder ao incómodo de uma lembrança. Este processo diz respeito a ignominiosos e reiterados crimes de abusos sexuais de crianças e jovens durante anos a fio numa instituição à guarda do Estado. É que, no meio disto tudo, este módico parece ter sido esquecido e perdido em intermináveis sessões de julgamento e em quilómetros de papel escrito pelos jornais sobre as vicissitudes políticas e processuais do caso.
Já lá ia mais de um mês sem resultados até que o país é surpreendido por buscas e apreensões no jornal que havia revelado o escândalo do célebre envelope 9. Esse envelope apenas contém a relação de alguns dos números de telefone escutados no processo da Casa Pia, nos quais se inclui o do próprio Presidente da República! Ninguém sabe como nem porquê.
O Ministério Público o que tem de investigar é a razão dos números terem sido fornecidos, se foram efectivamente escutados, quem os pediu, quem os forneceu, se quem os pediu podia pedir, se quem os forneceu o podia fazer, se algum destes comportamentos é ilícito e quem eventualmente terá violado algum dever devidamente tipificado como crime, deduzir acusação e seguir os demais termos.
Numa postura claramente desafiadora o Ministério Público decide, mais de um mês depois do curtíssimo prazo, invadir um jornal e vasculhar os computadores de jornalistas. Isto é, está a investigar ao lado do que devia. Jorge Sampaio, não se sabe se por enquanto, se definitivamente, mantém-se calado depois da pompa da comunicação oficial.
O Ministério Público decidiu atacar o mensageiro. Isso também revela a implícita capacidade de investigar o facto. O que é preocupante. Existir a suspeita de que vivemos numa sociedade escutada e não controlada nem fiscalizada por ninguém é um vírus que contamina de forma grave e perigosa a vida pública e privada da sociedade portuguesa. E qual é a resposta de quem se devia esperar eficácia e confiança? Investigar jornalistas.
Pelos vistos não são só os desenhos dinamarqueses que colocam o problema das ameaças à liberdade de expressão. E este tipo de ameaças não vem dos fundamentalistas islâmicos, mas bem cá de dentro de um sistema que é suposto ser o de um Estado de Direito. Este sim, uma caricatura nos tempos que correm, em Portugal.
(publicado na edição de hoje no Diário de Aveiro)
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